Dom Bernardo Bonowitz, OCSO Abade do Mosteiro de Nossa Senhora do Novo Mundo, Campo do Tenente (PR) |
Parece-me (tomei o risco de não checar o dicionário) que o prefixo “em”, em português, é, geralmente, usado para descrever o estado de alguém que sofreu a ação intensa de um agente externo que faz uso de um instrumento particular para afetá-lo. Este estado pode ser transitório, renovável ou permanente. Um “enfeitiçado”, por exemplo, é uma pessoa que foi posta sob um sortilégio por um feiticeiro através do uso de um feitiço. Um “encantado” foi cativado pelo emprego de um encanto por um encantador. Foi-me pedido falar nesta conferência acerca de “contemplativos enamorados”. O próprio título designado para esta conferência (“Contemplativos: Enamorados de Deus”) dá-nos uma pista acerca da identidade da parte culpada, o enamorador. É o próprio Deus. Qual é o instrumento que ele usa, quais são os efeitos que este enamoramento produz naqueles por ele atingidos e quais são as possíveis consequências que este estado tem sobre outras pessoas? Será que enamoramento é contagioso?
Deus tem muitos meios à sua disposição para fazer as pessoas se apaixonarem por ele (esqueci de dizer que ele não apenas age como enamorador, mas também deseja ser o objeto do amor que desperta). Ele possui sua própria beleza infinita que nossa tradição afirma poder, de alguma maneira, tornar-se perceptível a um coração purificado e a uma mente unificada. Ele tem aquilo que Mestre Eckhart chama de o livro da natureza – um livro que Eckhart descreve como “cheio de Deus” e no qual Deus pode ser “lido” em qualquer momento, desde o floco de neve até a Via Láctea. Ele criou o milagre de nossa individualidade: isto é, a experiência de nós mesmos como “tremenda e maravilhosamente feitos” (Sl 138) pode gerar um amor intenso por nosso Criador. Ele possui os frutos da civilização, um espelho da sua criatividade e sabedoria infinitas. Pintura, escultura, literatura, música (sobretudo música!) podem nos fazer pular sobre elas ao as experimentarmos e encher-nos de amor por aquele que as inspirou. Sempre que ele leva duas pessoas a se amarem, elas – como os dois discípulos de Emaús, ou como S. Elredo e Ivo no tratado de Elredo sobre a amizade espiritual – sentem a presença de um divino “terceiro” e seu amor um pelo outro pode desembocar num amor pelo “homem no meio”. Aquele que deu origem a todas as tradições religiosas da humanidade pode nos levar através da prática, tradições e literatura sagrada delas ao amor do Deus Desconhecido (ou parcialmente conhecido).
Mas sua “flecha escolhida” (como ele é chamado no livro do profeta Isaías, e também no Comentário ao Cântico dos Cânticos de Gregório de Nissa), é o próprio Cristo. Cristo é o instrumento infalível que Deus usa para fazer o contemplativo (e todo cristão) se apaixonar por ele, e o poder irresistível deste instrumento consiste no fato de que Cristo é a suprema manifestação do amor de Deus por nós – uma manifestação realizada não apenas através da poesia ou da filosofia ou mesmo através da divina Torá, mas através da vida, morte e ressurreição de um ser humano, o Filho de Deus encarnado.
Começamos falando do imenso arsenal de armas que Deus tem à sua disposição para atrair as pessoas para amá-lo e como ele escolheu focar-se em uma – o envio de seu Filho. Nós podemos estreitar, ou concentrar, nossa atenção ainda mais, e dos trinta e três anos da vida deste Filho, nós podemos nos focar em meros três dias, os dias do mistério pascal de Cristo. Mais que quaisquer outros dias na história do mundo, estes três dias nos assaltam com o amor de Deus por nós (eles nos “ferem”, diria Gregório de Nissa) e nos incitam à redamatio – ao “amar Deus de volta” (a única maneira de amarmos aquele “que nos amou primeiro”) e, mais exatamente, a amá-lo de volta com o mesmíssimo amor que ele nos concedeu.
I. Olhemos para algumas das dimensões do amor com o qual Deus nos amou nestes três dias; é este amor, no fim das contas, que é constitutivo de nossa identidade, que nos transforma em enamorados.
a) Na morte de Cristo, Deus amou a nós, seus inimigos, para além de nossa inimizade e para dentro de sua amizade (justificação; reconciliação). Com frequência se afirma que Deus nunca foi nosso inimigo e que ele só precisava fazer-nos entender sua benevolência ilimitada para que fôssemos reconciliados com ele e para que a inimizade, na medida em que existia, fosse morta. Não tenho certeza que a benevolência de Deus, tomada em si mesma, seja assim todo-importante. O que quero dizer é que nós certa e verdadeiramente éramos seus inimigos, pela maneira como vivíamos, pelas motivações que realmente governavam nosso comportamento, por nossas tentativas de manipular Deus ou de ficarmos fora do seu alcance tanto quanto possível, por nossa quase constante infidelidade à sua vontade revelada, por nossas múltiplas idolatrias, pela maneira como nos tratávamos uns aos outros. Uma declaração explícita de ódio ou de rejeição a Deus não é necessária para que haja inimizade. Éramos seus inimigos, e dominados pelo pecado como estávamos, caminhávamos rumo à morte (Rm 7 e o outdoor na faculdade). A medida na qual “o pecado continue dominando os nossos corpos mortais” – pelo menos o meu – mesmo após o fato todo-transformativo da redenção, deveria nos dar uma ideia do qual era realmente nossa situação antes de Cristo ter nos salvado. Para mim, a descrição mais concisa e incisiva do nosso estado antes da morte de Cristo se encontra em Tt 3, “odiosos e odiando-nos uns aos outros”. Odiávamos a Deus e uns aos outros, e podemos acrescentar uma boa dose de ódio contra nós mesmos. Foi o amor sacrificial além de toda medida com o qual Cristo nos amou na Cruz – não somente como expressão de afeto verdadeiro, mas como sacrifício redentor – que nos libertou da carga intolerável de ódio. Se a Cruz de Cristo era insuportavelmente pesada para ele, era porque era composta de pecado e ódio e de um autocentrismo devastador. Carregamos esta mesma cruz até Sexta-Feira Santa, quer estivéssemos conscientes disto ou não, e seu peso nos esmagava e acabava com a nossa humanidade. Quando Deus enviou o seu Filho, ele tirou este fardo dos nossos ombros, para nunca mais ser imposto novamente. Pela primeira vez, podíamos respirar, respirar livremente. Se não entendemos ou acreditamos nisto, além de ainda ficarmos com nossa mochila de pedras, teremos nulificado – pelo menos para nós mesmos – o estímulo infinito para amar a Deus que é a crucifixão de Cristo.
b) Uma segunda dimensão do amor de Deus por nós, muito proximamente relacionada à primeira, é quem nos libertou. Com quanta frequência o autor da carta aos Hebreus nos repete que o sangue de bodes e novilhos nunca pode tirar o pecado. Kierkegaard afirma que entre Deus e qualquer criatura existe uma “infinita diferença qualitativa”. Dado que sacrifícios animais eram incapazes de nos livrar das obras mortas para servirmos ao Deus vivo, será que não haveria uma instância intermediária, será que não haveria um preço menor que Deus pudesse pagar por nossa reconciliação? Considerando nossa dignidade indubitavelmente menos que divina, será que era necessário que Deus pagasse nosso resgate com um preço imensurável – imensurável não apenas ontológica mas também afetivamente – isto é, com a morte de seu querido Filho, o primogênito do seu coração? E, todavia, é assim que Deus escolheu agir – não por extravagância ou por capricho ou por exibicionismo – mas porque o sangue de Cristo era a única expiação eficaz para os pecados do mundo. “Para redimir o escravo, destes o Filho”. Paulo nunca se cansa de voltar a esta ideia, que para ele é o maior e mais incontroverso argumento que há para nos levar ao amor de Deus. Vejo Paulo sentado à luz do sol, ofuscado e repetindo um sem número de vezes, “Ele me amou e se entregou por mim”. E, juntamente com este, Jo 3,16, que Lutero chamava “o pequeno evangelho” – todo o evangelho em miniatura: “Tanto Deus amou o mundo que entregou seu Filho único”.
c) Uma terceira dimensão deste amor irrefutável de Deus por nós é o quanto ele nos tornou livres. Você pode se reconciliar com seus inimigos sem ter que adotá-los. In medio stat virtus. Mas o amor de Deus por nós não se limitava em nos justificar, seja no sentido jurídico de nos declarar justos e como tais a salvo “da ira vindoura”, seja no sentido ético de genuinamente nos capacitar a “servi-lo em santidade e justiça todos os dias de nossa vida”, “caminhando na novidade da vida”. Certamente ele operou nossa justificação, mas isto foi apenas o início da obra regeneradora de Deus. “Regeneradora” realmente é a palavra apropriada neste contexto: em Cristo, Deus nos deu um novo nascimento. Ele próprio nos gerou e pelos sacramentos de seu Filho e o dom de seu Espírito, ele cumpre em nós uma assimilação sempre mais perfeita ao Primogênito. Ele coloca em nós um coração novo e um espírito novo, como ele prometeu pelos profetas: a interioridade do próprio Cristo. “Temos a mente de Cristo”. E a essência deste novo ser é a nossa relação sem limites com Deus. Se ele forma as características de seu Filho em nós, é porque ele deseja que em Cristo “tenhamos pleno acesso” a ele como seus filhos e filhas, o mesmo acesso que Jesus tem. Assim nós vemos que o versículo acima citado do Exsultet – “para resgatar o escravo, destes o Filho” – por mais belo e tocante que seja, é em certo sentido uma formulação inadequada da intenção de Deus no sacrifício pascal de Cristo. “Para resgatar vossos filhos, destes vosso Filho”. Somente Deus com seu olhar afiado podia perceber mesmo antes da redenção que de nossa humanidade dividida e destroçada poderia surgir toda uma nova raça de filhos e filhas de Deus – “uma raça eleita, um sacerdócio régio” (1 Pd 2,9). Más é por isto que ele agiu assim. Numa das orações eucarísticas, o objetivo da obra redentora de Cristo é expresso como sendo “a fim de que (o Pai) pudésseis ver e amar em nós o que vedes e amais no Cristo”. Mas Deus não precisa esperar pela redenção para gozar desta “visão beatífica” de nós. É exatamente porque ele a tinha desde toda a eternidade – que ele já nos via conforme a sua intenção para conosco em Cristo – que, sem deixar-se dissuadir por nossa automutilação espiritual, ele “restituiu-nos à vida quando estávamos mortos no pecado”, “ele nos ressuscitou para a vida com Cristo”, “ele nos fez sentarmo-nos com Cristo nos lugares celestes”. Como podemos ver desta cadeia de citações, perdoar os nossos pecados é apenas o primeiro passo no projeto de Deus para nos conduzir à completa intimidade filial consigo. A Igreja Ortodoxa chama a plena realização do plano de Deus theiosis – divinização. Nós, ocidentais, podemos recuar diante da ousadia do termo. Mas os cristãos orientais sabem que fomos verdadeiramente chamados a “participar na natureza divina” (2 Pd 1,4) e que esta participação não é primariamente ontológica mas relacional, é a entrada na família trinitária através da perfeição da configuração com Cristo. Lembrem-se do que o Senhor diz a Adão naquela extraordinária homilia antiga para o Sábado Santo: “Levanta-te, ó homem, obra de minhas mãos, levanta-te, tu que foste plasmado à minha imagem. Vamos, saiamos daqui; pois tu em mim e eu em ti, juntos somos uma pessoa indivisa”.
d) Muitos anos atrás, antes que a maioria de vocês tivesse nascido, quando eu era um vocacionado para o mosteiro trapista de Spencer, MA, um grupo de amigos me questionou acerca de minhas intenções vocacionais. Sendo muito práticos, eles perguntaram, “Então, que proveito você vai tirar disto?” Eu parei para pensar, e ainda me lembro que fui tomado por uma tremenda alegria. Respondi: “Que eu vou ganhar? Tudo. Vou ganhar tanto Deus quanto uma família, tudo ao mesmo tempo”. Naquela época (19 anos de idade), quando eu disse “família”, estava pensando da comunidade monástica, que me parecia ser a mais maravilhosa família imaginável. Sem negar isto, hoje eu entendo que aquela “família” que juntamente com Deus é “tudo” é a Igreja. Esta é a quarta dimensão do assalto de amor de Deus. Deus não se restringe ao nos outorgar o imensurável dom de si mesmo. Ele sabe (afinal de contas, foi ele mesmo que primeiro disse isto) que “Não é bom para o homem estar só”. Melhor ainda que os Padres da Igreja, Deus, que nos fez, sabe que somos inescapavelmente sociales por natureza: que ele nos estruturou para vivermos em comunhão amorosa não somente com ele, mas com os “parceiros de nossa natureza”. A Igreja é exatamente o Corpo daqueles que vivem esta unidade de espírito tanto com Deus quanto uns com os outros. Hoje nós entendemos melhor (melhor que em muito tempo) que o destino ao qual Deus chama cada um de nós em Cristo não é a união solitária, monista com ele, mas uma união com ele que se vive numa vida partilhada com todos os outros cristãos crentes, uma unidade com ele que é nutrida por nossa união com os outros crentes. Balduíno de Ford, abade cisterciense inglês do séc. XII, ao comentar sobre o versículo de Efésios, “para preservar a unidade de espírito no vínculo da paz” lê este texto como uma apresentação destas duas comunhões entrelaçadas – cada um de nós é chamado a tornar-se um só espírito com Deus (1 Cor 6,17) e todos nós somos chamados a viver esta unidade de espírito como uma única realidade orgânica, o Corpo de Cristo, reforçando perpetuamente sua unidade ao estreitarmos o vínculo da paz. São João expressa estas duas uniões como dois mandamentos; para ele, são os únicos dois que existem: crer em Jesus como o Filho de Deus e amarmo-nos uns aos outros como Deus nos amou. Eu me pergunto às vezes se damo-nos conta que nossa pertença à Igreja é a maior bênção interpessoal que possuímos, e inseparável da bênção de conhecer a Deus e saber-nos conhecido por ele. A Igreja (Jesus que o diga) é o cêntuplo – a multidão de mães, irmãos e irmãs que se tornaram nossa herança – nossa família, no sentido mais profundo da palavra – quando o seguimos.
e) A última dimensão do amor de Deus a nós através do mistério pascal do seu Filho é o dom de sua Mãe. Os protestantes conseguiram “apaga-la da foto”; nós, católicos, confessamos ser isto impossível. Embora não sendo Deus, sua própria pessoa continuamente media e torna experiencial para nós a realidade divina – sua compaixão, sua prontidão em “tudo desculpar, tudo crer, tudo esperar, tudo suportar” (1 Cor 13,7), seu abraço materno, seu respeito por nossa individualidade e por nossos limites. Deus, embora todo-poderoso, não pode ser nossa mãe, exceto por analogia; Maria pode sê-lo, e por dom de Deus, ela o é. Se nós a cortássemos, ficaria faltando algo em Deus. Com frequência a paz que Cristo deu aos seus discípulos na Última Ceia é chamada de seu “dom de despedida”. Mas quando lemos o Evangelho de João, vemos que seus últimos e melhores dons são literalmente sua mãe e seu Espírito.
II. É isto que o contemplativo contempla: o amor de Deus por nós em Cristo Jesus nosso Senhor – e não a essência divina ou a Trindade imanente ou a Deidade supratranscendente. Ele não contempla a bondade infinita de Deus para conosco com o “ponto fino de sua alma”, mas sim, “com todo o seu coração, com toda a sua alma e com toda a sua força”. Seu objetivo não é atingir um conhecimento rarefeito (“O conhecimento incha”, 1 Cor 8,1) mas um conhecimento amoroso, um conhecimento que é amor – “Amor ipse notitia est” (“A caridade edifica”, 1 Cor 8,1). Este conhecimento contemplativo não repousa em si mesmo. Tanto o Papa Bento XVI quanto o Papa Francisco deixaram claro que a contemplação deve desembocar na ação, numa vida que é uma resposta àquilo que é contemplado. Em Verbum Domini, Bento acrescenta um quinto estágio aos quatro tradicionais passos da lectio, onde contemplatio é transformada em actio. E em Vultum Dei Quaerere, Papa Francisco diz que o fim último da lectio divina é tornar-se uma “exegese viva da Palavra”. Em outras palavras, o fruto da contemplação de um enamorado contemplativo será um estilo coerente de viver (uma conversatio, poderíamos chamá-la) que é uma redamatio encarnada – uma resposta concreta da nossa parte ao “grande amor com o qual Deus nos amou” (1 Jo 3,1). E esta resposta não será uma conformidade submissa à exigência divina, mas a expressão livre de uma pessoa humana que se experimenta como amada por Deus.
Eucaristia
a) Como é que uma pessoa, como é que uma comunidade que se sabe amada por Deus em Cristo, responde? Em primeiro lugar, por ação de graças e louvor. Ação de graças sobe dos corações daqueles que se sabem “altamente favorecidos” e que maior favor poderíamos receber do que ser “chamados das trevas para a sua luz maravilhosa (1 Pd 2,9)”? A Eucaristia diária é a ação de graças da comunidade contemplativa pelo amor de Deus que ela veio a reconhecer. A Eucaristia é o grito de “Bis!” da comunidade. “Queremos experimentar aqui e agora, em nossos dias e todo dia, o ato salvífico de Deus em Cristo que é a suprema expressão do amor de Deus por nós”. É misterioso que a celebração da Eucaristia é a mais plena expressão possível de ação de graças pela nossa salvação através do mistério pascal e ao mesmo tempo a manifestação da fome e sede a participar diariamente e sempre de novo na vivência do mistério de nossa salvação. É a intuição da comunidade (assim como de toda a Igreja) que não há outra forma de melhor expressar seu agradecimento amoroso do que realizar o mandamento de Cristo “Fazei isto (de novo e de novo e de novo) em memória de mim”.
Ofício Divino
b) Como podemos “bendizer o Senhor Deus em todo o tempo, seu louvor estando sempre em nossa boca” (Sl 33,1)? A comunidade contemplativa encontrou uma resposta a este anseio na celebração do Ofício Divino. O Ofício é um sacrifício contínuo de louvor – não de louvor genérico, não de louvor por um dia ensolarado – mas de louvor pela revelação por Deus de seu Filho. O Ofício, como o Bíblia, possui uma unidade, porque tem um centro: Cristo. Os Padres, sobretudo Santo Agostinho, ensinaram-nos que em cada um dos salmos louvamos Cristo ao permitirmos-lhe que fale através de nós, permitindo-lhe narrar a história de sua vida encarnada, de seus sofrimentos e de sua glória, e de expressar seu amor pelo Pai e pelo mundo. E igualmente, os salmos oferecem-nos um meio de conversarmos continuamente com o Senhor, de darmos voz a toda a amplitude de nossa relação com ele (e da relação da humanidade inteira com Ele também) através das tonalidades variadas contidas no Saltério. É fora de dúvida que a óctupla celebração diária do Ofício tal como prescrito na Regra de S. Bento tem a finalidade de transbordar em todas as horas que estamos despertos – e nas que estamos dormindo também. Sentimos isto nas citações do Sl 118 que ele usa ao estabelecer os ritmos do Ofício Divino: “Sete vezes por dia eu vos louvarei... e à meia-noite me levantarei para louvar-vos” (RB 16,3.4).
Lectio Divina
c) A comunidade contemplativa, como Maria de Betânia, a quem ela é frequentemente comparada, deseja manifestar seu amor pelo Senhor ao ouvir continuamente sua palavra. E como Marta de Betânia, a quem ela é comparada por figuras extraordinárias como Eckhart, a comunidade contemplativa quer manifestar seu amor servindo-o – obedecendo à sua palavra. As duas irmãs vivem e atuam em nós (como Jacó e Esaú no seio de Raquel) através do mesmo processo da lectio divina. Durante os períodos do dia dedicados à lectio, o contemplativo tem a alegria de ouvir o Jesus vivo falar-lhe no “hoje” do Sl 94 e na sua mais íntima individualidade. Como diz S. Bento no Prólogo de sua Regra, “O que pode ser mais doce, caros irmãos, que esta voz do Senhor a nos chamar?” E todavia, esta palavra não é falada em nossos corações simplesmente para serem saboreada, mas para ser cumprida – para ser obedecida – e é esta escuta e ação conjuntas que Jesus chama de bem-aventuradas: “Bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática”. Obediência à palavra de Jesus, por mais custosa que seja, é uma das mais autênticas – e indispensáveis – formas de se amá-lo. E neste mundo, é a única forma de se construir nossa existência sobre um fundamento firme: “Aquele que ouve estas palavras e as põe em prática é semelhante a um homem que construiu sua casa sobre a rocha (Mt 7,24)”.
Ascese
d) Quem quer que ame, deseja dar um espaço sempre maior ao Amado em sua vida. Num sermão de seu comentário ao Cântico dos Cânticos, São Bernardo diz que no início restringimos a morada de Cristo em nós a um espaço muito confinado. Na medida que nosso amor por ele cresce, damos-lhe mais e mais espaço em nossa vida interior – em toda a nossa vida – de modo que, enquanto que no início ele mal podia sentar-se em nossa casa interior, com a passagem dos anos ele é capaz de passear, de correr e até mesmo de dançar dentro de nós. O que permite que isto aconteça é a ascese que empreendemos e na qual tentamos fielmente perseverar. Ascese é fundamentalmente a remoção de “tranqueira”, a liberação de espaço interior pelo abandono de apegos fúteis. Sejam estes apegos por bens e prazeres físicos, por realizações emocionais ou para a manutenção de uma noção de nós mesmos que nos ilude em acreditar que somos autossuficientes, eles deixam Cristo de escanteio. As paixões são sempre substitutos pobres de relações pessoais, mesmo quando não queremos que elas ajam assim. Assim como é impossível servir a Deus e ao dinheiro, assim também é impossível viver em profunda amizade com Cristo e manter nosso apego a múltiplas satisfações criadas. É um amor preferencial por Cristo que nos faz empreender as práticas de renúncia, e estas práticas produzem os resultados desejados. Como Tobit disse a Tobias depois que seu filho removera as escamas de seus olhos, “Agora posso vê-lo”. Apegos são estas escamas sobre nossos olhos e a renúncia nos ajuda a removê-las e a permitir que o Cristo que é amado e que já está presente se manifeste, a fim de que mais e mais “vejamo-lo tal como ele é” (1 Jo 3,2).
Imitatio Christi
e) Um provérbio inglês diz, “Imitação é a forma mais sincera de lisonja”. Para o contemplativo, a imitação de Cristo representa um esforço empenhado em receber amorosamente sua vida na nossa e em amorosamente reproduzi-la. O próprio Jesus em seu amor sem limites pelo Pai foi o grande imitator Dei e nós em nosso amor pelo Senhor lutamos em ser imitadores dele. Esta é a base de nossos votos monásticos: uma assimilação a Cristo que leva a uma identificação com ele através de uma observância fiel de suas atitudes, de seus comportamentos, de seus valores, de sua relação com a realidade criada. Vemos que em toda a sua existência humana, Jesus “buscou o reino de Deus e sua justiça” e de fato “encontrou-o” através de sua pobreza, castidade e obediência. Para Jesus, estas não eram experimentadas negativamente como sacrifícios mas como portas para dentro do reino e a posse do reino. Ele deixa isto muito claro nas Bem-aventuranças, em seus ensinamentos sobre o casamento e o celibato, em sua insistência invariável em fazer a vontade do Pai. Num dado ponto nos Evangelhos, Jesus diz a um fariseu, “Tu não estás longe do reino de Deus”, e Jesus podia falar assim com autoridade, por ser aquele que tinha cruzado o limiar do reino. Inicialmente, os votos são um risco para nós: para usar um neologismo, eles são experimentados como “contraintuitivos”. Será que riqueza, liberdade sexual e autonomia irrestritas não seriam acessos mais promissores ao reino? Lembro-me que em meu primeiro ano de noviciado com os jesuítas, tivemos um longo diálogo com o grupo formador acerca do celibato – os prós, os contras e os por quês. A palavra que reverberou foi dita por um sacerdote holandês, assistente do mestre de noviços: “A única razão pela qual eu vivo o celibato é porque Jesus o viveu”. Seria difícil expressar melhor a unidade entre a vivência dos votos e o amor de Cristo.
Vida Fraterna
f) No centro do sonho de Jesus havia uma sociedade de amor e respeitomútuos, de servir ao invés de ser servido, de dar sem pedir nada em troca, de recusar perseverar em inimizade, de tratar todas as pessoas tal como Deus as trata, de chamar mesmo os traidores de “Meu amigo”, de lavar os pés dos outros, de dar o próprio manto e de oferecer a própria vida por eles. Ele não acreditava muito em santidade eremítica, embora conhecesse o fardo da tentação e da tristeza solitárias. Seu sonho, pelo qual ofereceu sua própria vida, era o do novo Israel, da comunidade santa, todos unidos ao seu Pai e unidos entre si no poder do seu Espírito. Talvez a maior manifestação de nosso amor que este seu amor por nós evoque seja nosso compromisso em realizar este sonho de Jesus. A vida em comum, a vida fraterna, não é uma estrutura enfadonha que permite a busca da santidade individual. No que concerne a Jesus (e sua convicção atinge seu zênite nos discursos joaninos de despedida), a vita communis era “a gordura e o tutano” da vida espiritual. É fora de dúvida que verdadeiro compromisso ao cenóbio inclui muita frustração, muito sofrimento e muito autoconhecimento doloroso. É tentando viver o “bom zelo” que Bento pede de seus monges na conclusão de sua Regra que nós nos deparamos constantemente contra nosso próprio egocentrismo inflexível – assim como o de outros membros da comunidade. É na tentativa de se viver em partilha, perdão e serviço que somos forçados à descoberta humilhante que outras pessoas não significam muita coisa para nós, se é que significam algo. Eu proporia isto – para aqueles dentre vocês aqui presentes que pertencem à família beneditina – como um décimo terceiro grau da humildade. Aceitemos esta verdade dolorosa, e peçamos a Jesus que cumpra sua promessa profética e nos dê um novo coração e um novo espírito – não diferentes de nossos velhos – mas ressuscitados dos mortos. Sim, nós abraçamos a vida comunitária para testemunhar que Deus tem poder “de devolver a vida aos mortos e chamar à existência as coisas que não são” (Rm 4,17).
Espero ter conseguido deixar claro na segunda parte desta reflexão que todo o conjunto de estruturas, práticas, atividades, votos que compõem uma comunidade contemplativa não vêm “da parte dos homens, nem por homem algum” (Gl 1,1) – isto é, não são o resultado do planejamento e criatividade humanos. Antes, são uma resposta eclesial integrada ao impacto de sermos amados por Deus em Jesus Cristo. Eles são simplesmente (embora talvez não unicamente) aquilo que surge da percepção inegável de que Deus nos amou e nos salvou em seu Filho e nos destinou à vida eterna. Eucaristia, Ofício Divino, meditação da Palavra de Deus, ascese, imitação de Cristo, comunidade cristã – não representam componentes aleatórios de uma resposta de fé na proclamação do Evangelho. Eles são a resposta. Cada vez que pessoas são arrebatadas (ou “enamoradas”) pelo amor que Deus manifestou em seu Filho, estes são os elementos que constituirão sua nova vida. E igualmente, cada vez que uma comunidade contemplativa é fundada ou deseja fazer contato renovado com as fontes de sua vitalidade, ela terá que prestar intensa atenção com o “ouvido do coração” aos ensinamentos do Novo Testamento, a escutar e acreditar naquilo que Deus fez por mim – por nós – e a que preço. Então tal comunidade nascerá do alto.
III. “Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5,25). Quanto mais nós, contemplativos, tornarmo-nos enamorados do Deus que se revela em Jesus Cristo, mais teremos o coração e a mente de Cristo, e experimentá-la-emos como um solene e alegre imperativo de amar a Igreja e de nos entregarmos por ela. Assim como a dimensão fraterna da vida cristã é tão central que não existe Ordem inteiramente eremítica na Igreja Católica (os cartuxos se descrevem como “semieremitas”), assim também o elemento eclesial é tão integral à vocação cristã – a toda vocação cristã – que é impossível dar-se autenticamente a Cristo sem dar-se igualmente ao Povo de Deus. Aquele famosíssimo apoftegma de Evágrio tem que ser compreendido na sua integridade para ser válido e todo o apoftegma tem que ser lido à luz de seu telos: “O monge é aquele que é separado de todos a fim de estar unido a todos”.
Como é que nós, contemplativos, devemos amar a Igreja pela qual Cristo se entregou, reconhecendo que o amor que recebemos enquanto indivíduos é uma “personalização” de seu amor pela Igreja da qual somos membros? Como podemos viver a intuição de um São Bernardo que o “grande casamento” descrito nos Cânticos dos Cânticos ocorre entre Cristo e a Igreja, e que nossa própria experiência individual constitui um “pequeno casamento” (entre o Logos e a mens) que só é válido dentro do contexto da união entre Cristo e seu Corpo?
a) A expressão mais fundamental de nosso amor à Igreja de Cristo é nossa fidelidade à nossa vocação. Todo domingo nós afirmamos nossa fé na communio sanctorum – a posse comum de todos os bens sagrados da Igreja. Destes “bens”, a santidade em si é um dos mais preciosos e um dos mais comunicáveis. Durante muitos séculos, os contemplativos se entregaram com grande generosidade à sua vocação, na convicção de que esta autotranscendência se “traduz” em numerosas graças para o povo de Deus – graças de conversão, graças em tempo de tentação, graças de perseverança e, em particular, graças para os esforços missionários da Igreja. Há uma “parceria” entre os contemplativos e os missionários. A intenção deles é a mesma – “Da mihi animas” (“Dai-me almas”) – e é crucial que o contemplativo assuma conscientemente esta finalidade missionária de seu chamado de clausura.
b) Papa Francisco em sua constituição apostólica Vultum Dei Quaerere veementemente insistiu numa segunda expressão, próxima à primeira, de nossa dedicação à Igreja: a orientação de nossa oração contemplativa. Para ele, a oração contemplativa cristã é necessariamente intercessora, necessariamente se preocupa com todas as necessidades da humanidade, e se recusa a fechar-se sobre si mesma como uma busca privada por iluminação espiritual ou por experiência mística. A seus olhos, a oração contemplativa eclesialmente compreendida e intensamente vivida possui um valor e importância que não podem ser superestimados: “Hoje... podemos pensar que o destino da humanidade se decide no coração orante e nos braços levantados das contemplativas” (nº 17).
c) Uma particular conjunção de santidade e oração intercessora é a aceitação de livre vontade de um chamado ao sofrimento vicário. Embora isto talvez possa ser considerado uma “vocação dentro da vocação” na vida contemplativa ao invés de como algo característico da vocação de cada contemplativo, onde este chamado é acolhido, ele é uma expressão preciosa e frutuosa do amor pela Igreja. Foi o próprio S. Paulo que primeiro apresentou esta misteriosa possibilidade: “Completo em meu corpo aquilo que ainda falta aos sofrimentos de Cristo em favor de seu corpo que é a Igreja” (Cl 1,24). Seja através de sofrimentos físicos, emocionais ou espirituais, o contemplativo se identifica com o Cristo sofredor e oferece seus sofrimentos pessoais para alívio do sofrimento de outros e para sua própria salvação. Meu corpo é conformado ao corpo humano de Cristo em favor de seu corpo universal.
d) A celebração de nossa liturgia monástica é uma quarta expressão de nosso amor pela Igreja. No texto francês da Missa, a resposta do povo ao convite do sacerdote, “Orai, irmãos e irmãs”, é “Para a glória de Deus e a salvação do mundo”. É importante reconhecer que um grande número de hóspedes e visitantes aos nossos mosteiros experimentam a salvação como uma realidade precisamente através da interioridade, atenção, participação e alegria que caracterizam a celebração litúrgica em comunidades contemplativas. Nossas liturgias devem ser expressões vividas – não somente para nós mesmos, mas também os que participam nelas conosco – das verdades da fé. A liturgia é dogma vivenciado e a liturgia é pregação. Oferecemos à Igreja um grande serviço (um ao qual ela tem pleno direito) através de nossa maneira especificamente contemplativa de celebrar a Eucaristia e o Ofício Divino.
e) Hoje há um grande desequilíbrio entre oferta e demanda no que concerne a disponibilidade de diretores espirituais. Muitos leigos buscam alguém com experiência na busca da santidade cristã para guiá-los, e muitos religiosos, seminaristas e padres diocesanos – que sem dúvida alguma têm necessidade de um diretor, especialmente nos anos de formação – encontram-se na mesma situação de não conseguirem localizar uma pessoa com a disponibilidade e capacidade de orientá-los. Ainda que mosteiros não sejam a mesma coisa que “centros de espiritualidade”, membros de uma comunidade contemplativa prestam um auxílio necessário à Igreja quando se mostram desejosos em atender os fiéis na direção e confissão. Isto é especialmente o caso quando é questão daqueles que fazem retiro em nossas hospedarias.
f) Um dos pontos sobre os quais mudei de ideia durante estes vinte anos no Brasil é a conveniência do envolvimento de uma comunidade contemplativa na vida espiritual de uma diocese. Quando cheguei aqui, eu era completamente contra a ideia de qualquer engajamento num “apostolado”. Com o passar do tempo, porém, cheguei a ver que os contemplativos têm uma contribuição única a fazerem com respeito ao aprofundamento do apreço da Palavra de Deus e à prática da lectio divina, ao crescimento da vida interior e à uma compreensão genuína da espiritualidade cristã. Pessoalmente, acredito que os nossos mosteiros podem e devem aceitar um número limitado de convites para falarem e participarem em encontros, especialmente aqueles que ocorrem dentro de suas próprias dioceses. A amizade e sentimento de pertença mútua que tal participação gera entre nossas comunidades e a diocese é em si mesma uma expressão de nosso amor pela Igreja local – assim como de seu amor por nós.
g) Finalmente, expressamos nosso amor pela Igreja pelo dom de nós mesmos em nossa humanidade comum, das pessoas que nos tornamos através da vivência diária de nossa vocação. Muitos anos atrás, Pe. Francisco (nosso ancião) e eu estávamos almoçando num restaurante vegetariano em Curitiba quando nos dávamos conta de que uma senhora nos estava “estudando”. Após certo tempo ela partiu e continuamos nossa refeição. Quando saímos do restaurante, vinte minutos mais tarde, ela estava esperando na porta. “Quem são vocês?”, perguntou ela. “Por quê?” “Vocês são diferentes”. “Diferente bom ou diferente ruim?” “Diferente bom... tranquilos, alegres”. “Somos monges”. “Ah... tá”. Este “tá”, era uma percepção intuitiva renovação de nossa natureza, que Deus leva toda uma vida para nos comunicar e a nós, para a recebermos. Ela é um fruto lentamente amadurecido do amor de Deus por nós em Cristo e de nossa resposta a ele. Normalmente nós sequer somos conscientes dele, mas ele é real, ele “fala”, e como todo o mais que recebemos, ele pertence à Igreja.
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