Vida Monástica Contemplativa

Vida Monástica Contemplativa
"A Alegria da Consagração Monástica e Contemplativa" (tema)

quarta-feira, 24 de maio de 2017

FECUNDIDADE APOSTÓLICA DA VIDA MONÁSTICA E CONTEMPLATIVA NA AÇÃO EVANGELIZADORA DA IGREJA IGREJA

Dom Jaime Spengler, Arcebispo de Porto Alegre

É certamente muito bom poder estar aqui, junto ao Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, onde o nosso povo acorre para louvar, bendizer, honrar, agradecer, pedir e apresentar suas ‘tristezas e angústias, alegrias e esperanças’. 


Somos nestes dias, neste lugar, queiramos ou não, uma presença eloquente. A Vida Monástica e Contemplativa do Brasil vem ao Santuário da Mãe Aparecida, também em peregrinação, trazendo o que ela é e se empenha por testemunhar. Não falta santidade, virtudes, valores, conquistas, alegrias e esperanças; mas também não faltam angustias, tristezas, pecados, preocupações, contradições, fragilidades. Trazemos isso e colocamos sob o olhar atento de Maria, na esperança e confiança de que ela intercede e reza por nós. 


Viemos também a este Santuário para falar de nossas coisas, de nosso enamoramento de Deus, de nosso desejo de caminhar em sintonia com a Igreja, de nosso empenho por ser sinal profético do Reino em meio a um mundo marcado por tantas fraturas, de nossas expectativas e esperanças. 


O título de nossa conversa diz: ‘fecundidade apostólica’. Onde estaria fundamentada nossa ‘fecundidade’? Partimos de um pressuposto de que a vida monástica e contemplativa é marcada por fecundidade apostólica. Nossas casas são lugares de silêncio. Deus fala no silêncio, mas é preciso saber ouvi-lo! A vida monástica e contemplativa possui como característica (*) cultivar o olhar voltado para as “coisas do céu”. Os mosteiros são – ou deveriam ser – um oásis em que Deus fala à humanidade. Neles encontra-se, por exemplo, o claustro, lugar simbólico, porque é um espaço fechado, mas aberto para o céu” (Bento XVI). 

Ter o olhar voltado para as coisas do céu! Nossos mosteiros: um lugar fechado, mas aberto para o céu! Fechado mas não isolado. Fechado para favorecer o “foco”, o ‘centro’(*O que é, quem é para nós o centro?). 

A Vida Contemplativa e Monástica cultiva de forma particular o fato de que seus membros se sentiram “capturados por UM” (Deus). Ela se dispõe a abandonar as realidades fugazes e procurar capturar o Eterno. Ela é guiada e sustentada pelo forte desejo de entrar em união de vida com Deus, abandonando todo o resto, tudo aquilo que impede esta comunhão, e deixando-se capturar pelo amor imenso de Deus, para viver só deste amor. Os Mosteiros são “um oásis em que, com a oração e a meditação, se cava incessantemente o poço profundo do qual haurir a “água viva” para a nossa sede mais profunda” (Bento XVI). Desponta também aqui um aspecto da fecundidade apostólica da Vida Monástica e Contemplativa. 


Os contemplativos se expõem à solidão e ao silêncio para viver do essencial. Ao viver do essencial encontram profunda comunhão com os irmãos e as irmãs, com cada ser humano. Para tanto se faz necessário dar tempo a Deus para agir com o seu Espírito, e à própria humanidade dos ‘enamorados de Deus’ para se formar, para crescer em conformidade com a medida da maturidade de Cristo, nessa particular condição de vida.


O ministério dos Pastores e a ação evangelizadora da Igreja haurem das comunidades contemplativas uma linfa espiritual que provém de Deus. Neste sentido, a Igreja olha para a vida contemplativa e monástica com esperança. 


Os mosteiros, no dizer de São Bernardo, devem ‘preparar o novo paraíso’. A vida monástica e contemplativa tem a missão de preparar o novo paraíso! Os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica em comunhão com os pastores da Igreja, com o clero e os leigos, por sua vez, tem o dever de colaborar para sua implantação e construção. 

É inegável o legado da Vida Monástica e Contemplativa na construção daquilo que hoje com facilidade denominamos cultura ocidental. Ela certamente muito colaborou e colabora para que o ocidente se mantenha de pé!


Uma provação: ONDE ESTAMOS? 

Uma lenda da tradição rabínica, apresentada pelo filósofo Martin Buber, narra o seguinte: Rabbi Shneur Zalman, o Rabino da Rússia, foi caluniado junto às autoridades da parte dos chefes de seus adversários (mitnagghedim), que condenavam a sua doutrina e a sua conduta. Foi encarcerado em Pietroburgo. Um dia, enquanto esperava para comparecer diante do tribunal o comandante dos guardas entrou na sua cela. Diante do vulto confiante e imóvel do Rabino que, absorto, não o havia notado logo, este homem começou a pensar e intuiu a grandeza humana do prisioneiro. 


Começou a conversar com ele e não hesitou em discutir as questões mais variadas que sempre lhe surgiam quando lia a Sagrada Escritura. No final da conversa perguntou: "Como se deve interpretar que Deus onisciente diga a Adão: Onde estás?" (Gn 3,9). 


"O senhor crê – respondeu o Rabino - que a Escritura é eterna e que abraça todos os tempos, todas as gerações e todos os indivíduos?". 

"Sim, o creio", disse.

"Pois bem - respondeu o Rabino – em cada tempo Deus interpela a cada homem: 'Onde estás no teu mundo?

Dos dias e dos anos a ti concedidos já se passaram muitos: nesse meio tempo tu, até onde chegaste no teu mundo?'. Deus disse por exemplo: 'Muito bem, já são quarenta anos que vives. Onde estás? '"


Ao ouvir o número exato de seus anos, o comandante se controlou rapidamente, colocou a sua mão sobre o ombro do Rabino e exclamou: "Bravo!"; mas o seu coração tremia.

O texto de Martin Buber pode nos ajudar a compreender a nossa identidade e a implicância disso na ação evangelizadora da Igreja. Para poder percorrer o caminho, para ser fecundos, precisamos saber onde estamos, quem somos, o que somos, onde nos encontramos. Somente assim podemos saber para onde nos dirigir. Ainda mais se tratando do caminho da liberdade da Vida Monástica e Contemplativa. Porque o caminho característico dessa forma de vida só vale a pena enquanto caminho da liberdade. 


O texto de Buber ajuda a compreender em que consiste a fecundidade apostólica da Vida Monástica e Contemplativa. A provocação do texto no seu final quando diz: No final da conversa perguntou: "Como se deve interpretar que Deus onisciente diga a Adão: Onde estás?" (Gn 3,9). "O senhor crê – respondeu o Rabino - que a Escritura é eterna e que abraça todos os tempos, todas as gerações e todos os indivíduos?". "Sim, o creio", disse. "Pois bem - respondeu o Rabino – em cada tempo Deus interpela a cada homem: 'Onde estás no teu mundo? Dos dias e dos anos a ti concedidos já se passaram muitos: nesse meio tempo tu, até onde chegaste no teu mundo?'. Deus disse por exemplo: 'Muito bem, já são quarenta anos que vives. Onde estás? '"


Ao ouvir o número exato de seus anos, o comandante se controlou rapidamente, colocou a sua mão sobre o ombro do Rabino e exclamou: "Bravo!"; mas o seu coração tremia. A questão que inquietava o coração do comandante era: como fica a onisciência de Deus diante da procura que Deus faz de Adão: ‘Adão, onde estás’? 


A compreensão que o comandante tem da Sagrada Escritura é de quem não consegue entender a procura de Deus. Deus demonstraria a sua limitação, pois não consegue encontrar a Adão escondido depois do pecado.

Mas o Rabino inverte a preocupação: a Sagrada Escritura é para todos os tempos, para todas as pessoas. "Pois bem - respondeu o Rabino – em cada tempo Deus interpela a cada homem: 'Onde estás no teu mundo? Dos dias e dos anos a ti concedidos já se passaram muitos: nesse meio tempo tu, até onde chegaste no teu mundo?'. Deus disse por exemplo: 'Muito bem, já são quarenta anos que vives. Onde estás? '".

Em cada tempo, em cada estação da vida, Deus vai nos interpelando: onde estás? Onde estás no teu mundo? Não se trata de incapacidade ou limitação de Deus. Trata-se, sim, de uma procura; procura entendida como empenho por despertar em cada pessoa a necessidade de ter consciência de onde ela se encontra. Não se esconder da sua vergonha, da sua queda, mas saber onde se encontra.


A pergunta que nos cabe: onde estamos no nosso mundo? Somos fecundos? Dos anos passados, alguns 10, outros 20, outros 30 ou mais, onde chegamos no nosso mundo, o mundo da nossa vida? 

Mundo não é aqui compreendido como espaço geográfico ou o contrário do céu. Mundo não é o globo terrestre. Mundo aqui é o meu mundo. Mundo é minha busca, minha paixão, meu amor. Mundo é a compreensão que, na comunhão eclesial, tenho de Deus; é a realidade toda que construí em mim, ao redor de mim e que dá sentido à vida. Mundo é a totalidade da vida em construção, sendo movido por um sentido, que me alimenta, orienta e sustenta. 


Qual o mundo da minha vida monástica e contemplativa? Qual o mundo em que construí e vivo a minha vida consagrada? O mundo da minha vida de consagrado/a, isto é, dos meus sentimentos; o mundo da minha vida, dos meus amores, ideias, ideais e sonhos; da minha vida de pessoa dedicada às coisas da fé, da esperança, da caridade. Ou seja, a compreensão que tenho de Deus, do mundo, da realidade toda que construída em mim e ao redor de mim dá sentido à minha existência. 

Deus continua a nos procurar e a nos interrogar ‘onde estás?’, onde estás no teu mundo? Qual é o mundo da tua vida enquanto contemplativo/a? Qual é o universo da vida que construí e onde me movo? A nossa vida de consagrados contemplativos pertencentes a uma comunidade é o lugar de nos escondermos? Mas Deus não deseja que nos escondamos e sai a nossa procura e nos diz ‘onde estás’. Chama-nos para fora do nosso esconderijo, esconderijo de nós mesmos, esconderijo das nossas frustrações, esconderijo dos nossos desencontros, limitações...


Onde estás? Não como uma pergunta que nos acusa, que levaria a uma espécie de exame de consciência balizado por moralismos, que nos coloca em uma situação onde nos sentimos mal. Mas uma pergunta que nos provoca a sairmos do esconderijo de nós mesmos. Sairmos para a liberdade e percebemos onde estamos, onde chegamos, qual o mundo da nossa vida. Onde nos encontramos na nossa vida que um dia generosa, livremente e alegremente abraçamos? 


O que importa é sairmos e tentarmos verificar mais uma vez o que nos ampara, liberta, realiza, alegra, integra como homens e mulheres nesse tempo concreto em que vivemos. Temos somente esta vida. Temos tantos anos de vida. Mas, como estamos? Onde estamos? Como vivemos?


Perdemos muitas vezes a jovialidade, a boa disposição, a prontidão, o bom humor. Então, qual lugar Deus verdadeiramente ocupa em nossa vida? Ou melhor, como nos ocupamos de Deus, para receber de graça a jovialidade, a boa disposição, a prontidão, o bom humor, que vem gratuitamente do viver a vida, amparados, apoiados fundamentados no dom de ser chamados? Nisso se expressa a fecundidade da vida! 

Podemos cair na tentação de nos acomodar na cotidianidade, naquilo que fazemos por tradição ou costume, e nos tornamos pessoas mornas, satisfeitas-insatisfeitas, insatisfeitas-satisfeitas, com o lugar, com o trabalho, com os irmãos e as irmãs com quem convivemos, mas sem ânimo para uma busca de realização pessoal que provém de um encontro com Deus sempre renovado. Não porque o buscamos, mas porque ele nos procura sempre de novo. E no medo e receio de sermos conduzidos à liberdade de nós mesmos, podemos correr o risco de continuar escondidos, não desejando revelar a nudez em que vivemos. Deus respeita a nossa nudez, isto é, a nossa fragilidade e humanidade e deseja nos conduzir para fora do esconderijo onde nos colocamos por nos sabermos frágeis. 

Onde estamos? Onde está a vida monástica e contemplativa no Brasil? 


PARA REFLETIR: um desafio!

Nesta conversa, ocupar-nos-emos com um problema que diz respeito à nossa consagração e à nossa fecundidade apostólica. 


O problema pode ser vocalizado, mais ou menos, assim: A nossa formação dá sinais de não estar dando bons resultados, ou os resultados que esperávamos. E, por isso, nos sentimos, de certo modo, em crise. Isso se expressa, por exemplo, no número de vocações – poucas! – e no envelhecimento de algumas de nossas comunidades. 


Os indícios são inocultáveis. Sente-se certa anemia eclesial. Falta-lhe o vigor das raízes profundas, a tenacidade, o pathos, na vida pessoal e comum, nas relações comunitárias. Observa-se, quase que em toda parte, a lógica da profanidade: uma busca célere de cômodas relações com as coisas, com as pessoas, com Deus. Às primeiras provações e revezes, recua-se, desiste-se, acomoda-se revelando com isso uma debilidade espiritual grave e profunda. Outra vezes cai-se em vícios indignos de um ser humano, quanto mais de um consagrado! Falta não poucas vezes a fortaleza e o devotamento, a têmpera, a constância e a firmeza, o aguardo do lento crescer das coisas verdadeiramente grandes. 

A constatação não aponta, como se poderia pensar, apenas para as novas gerações, mas também para nós, os que ficamos, ainda ficamos, Deus sabe por quê. 

Urge que ultrapassemos, ademais, este instante da pura constatação ou esta paralisia da perplexidade, e busquemos compreender, em serena e corajosa reflexão, as causas deste estado e, por fim, as trilhas de sua superação. 

No encontro do Papa Francisco com o Episcopado Brasileiro, no Rio de Janeiro, durante a Jornada Mundial da Juventude, entre os desafios elencados para a Igreja no Brasil, vale destacar um aspecto: a formação. Dizia o Papa, comentando a cena de Emaús: “Senão formarmos ministros capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com elas, de dialogarem com as suas ilusões e desilusões, de recompor as suas desintegrações, o que poderemos esperar para o caminho presente e futuro? Não é verdade que Deus se tenha obscurecido nelas. Aprendamos a olhar mais profundamente: falta quem lhes aqueça o coração, como sucedeu com os discípulos de Emaús (cf. Lc 24,32). Por isso, é importante promover e cuidar uma formação qualificada que crie pessoas capazes de descer na noite sem ser invadidas pela escuridão e perder-se; capazes de ouvir a ilusão de muitos, sem se deixar seduzir; capazes de acolher as desilusões, sem desesperar-se nem precipitar na amargura; capazes de tocar a desintegração alheia, sem se deixar dissolver e decompor na sua própria identidade. Precisamos de uma solidez humana, cultural, afetiva, espiritual, doutrinal. É preciso ter a coragem de levar a fundo uma revisão das estruturas de formação e preparação (...) da Igreja que está no Brasil. Não é suficiente uma vaga prioridade da formação, nem documentos ou encontros. (...) A situação atual exige uma formação qualificada em todos os níveis”. 

A nós compete uma reflexão sobre o discernimento, a fim de que a Palavra Sagrada ilumine nosso pensar, nosso agir. É uma das hipóteses de investigação: Poderia estar aí uma das causas, desta assim dita: anemia da vida consagrada e eclesial? 

Quase nunca um desastre ou uma doença se deve a uma única causa. Sempre, uma análise séria detectará aí a ocorrência de vários fatores. 

Há boas razões para suspeitarmos que o estado atual da vida eclesial tenha também seus componentes institucionais, elementos que alcancem e provenham de mais longe do que apenas da boa ou má vontade, do preparo ou despreparo, do empenho, desempenho ou das dificuldades das pessoas que aí se encontram envolvidas. 

É algo que inquieta os mais atentos e os faz pensar: como atrair, como envolver, como chegar ao que de melhor há no mundo, nas artes como no saber, na criatividade como nas ciências, nos avanços e conquistas da humanidade e na efetiva atuação social. 

Por ora, entretanto, queremos voltar a atenção para um dos elementos constitutivos da vida cristã, a saber: o discernimento, na suposição de que poderia residir aí uma das causas dessa anemia e, em decorrência, da saúde mesma do cristianismo. 


Para a teologia espiritual católica, a coisa é simples... Discernimento é a capacidade de interpretar qual seria a vontade de Deus na própria vida e agir consequentemente... 

Mas isto que assim, sem maiores problemas, se define é algo, como veremos, repleto de imensas dificuldades, na experiência humana... 


Interpretar a vontade de Deus... O postulado é relativamente simples, não se tratasse disso: a vontade de Deus! Como atravessar o abismo intransponível que existe entre o homem e Deus? O homem pergunta e Deus silencia, restando em muitos a enigmática sensação de que toda busca não passa de um solilóquio, um monólogo da alma consigo mesma, com a própria interioridade. Isto não é nenhuma questão teórica. 

A fé, já aqui, nos assegura: também para aqueles que crêem, Deus jamais será uma evidência objetiva nos horizontes de nossas certezas, mas apenas um entrever nas penumbras de nosso caminhar. 


Uma inspiração.

Toda espiritualidade se constitui na confluência de pelo menos três elementos, entre si diversos, mas, ao final, em surpreendente afinidade: Deus e seu espírito, o homem e sua sensibilidade, o tempo, ou a história e suas características. 

O mesmo vale, ensina-nos a fé, para aquilo que chamamos vocação. 

O Espírito de Deus, fonte primeira e fundamental de toda a espiritualidade, age com sua livre transcendência sobre o coração humano. Mas tal acontece no contexto concreto de determinada situação histórica (J.B.Libânio). 

A vida humana não é um percorrer uma estrada luminosa e linear; antes, caminhamos na história por veredas sombrias e escorregadias, que se abrem somente às custas de muitos esforços, revezes, conquistas, buscas e esperanças. 

Precisamente este é o lugar do discernimento, essa busca de construir, através desse emaranhado, o caminho da própria estatura. 

Quatro parecem ter sido os fontes principais de discernimento, na vida dos grandes homens e mulheres de Igreja: a) o encontro consigo mesmo e com Deus; b) a renúncia da própria vontade (poder) em favor da vontade de Deus apenas; c) a busca de conhecimento daquilo a que se sente chamado; d) o diálogo com os irmãos/irmãs. 

a) O encontro consigo mesmo e com Deus... 

Quase todos, senão mesmo todos os grandes luminares de nossa história foram homens de uma misteriosa solidão. 

O próprio Jesus Cristo, narram-nos os evangelhos, antes de dirigir-se aos homens, teria se recolhido num deserto, esta zona do silêncio e do recolhimento, para, bem junto de si, buscar responder a mais banal e mais evitada de todas as perguntas: quem sou eu, quem é o outro, o que é Deus? 

Pois esta é uma das elementares leis do espírito: jamais encontrará a Deus e nem ninguém quem nunca encontrou a si mesmo. E como fazer aquilo que chamamos vontade de Deus se nem bem sabemos distinguir o que é Deus, o que é o outro e o que é apenas a projeção de nossa desfocada perspectiva, ou de nossos desacertos interiores? 


Mas como conhecer-se a si mesmo quem nunca ousou descer pelos labirintos obscuros de sua própria alma, lá onde habitam certamente anjos, mas inegavelmente também feras e demônios? (Quantos são os demônios que nos tentam? Somos tentados? Papa Francisco falava de algumas tentações que assolam a comunidade de fé: a ideologização da mensagem evangélica (reducionismo socializante, psicologizante, a proposta gnóstica, a proposta pelagiana); o funcionalismo; o clericalismo;...) Há tentações que tem uma incidência mais “ad extra”, mas há também aquelas que tocam a nossa intimidade, a nossa singularidade, a nossa essência de homens e homens consagrados! 


Quando ousamos descer às profundezas de nós mesmos, nós sempre trombaremos com forças descomunais que habitam em nós mesmos, forças que podem nos levar nessa ou naquela direção, forças que nos desagregam ou integram, que nos tornam grandes ou mesquinhos... 

Urge conhecê-las bem, olhar-lhes nos olhos, acolhê-las, quais forem, como dádivas de nossa própria natureza... Assim, nada que trazemos em nossa natureza é mau, absolutamente... Mas pode se transformar num mal terrível, se perder o equilíbrio ou a justa medida... 


O que temos que fazer é aceitar que somos assim: temos impulsos e instintos, queremos ser amados, temos nervos, temos estômago, temos necessidades instintuais, não somos anjos, temos carências, temos limites, somos também bichos e, às vezes, muito ferozes... 


Os grandes de nossa tradição cristã eram mais ou menos assim: pessoas do justo equilíbrio, delicado e vigoroso, disciplinado e livre, compreensivo e exigente... 

Esta unidade de contrários: espírito e instinto, alma e corpo, imanente e transcendente, finitude e infinitude, só se consegue com muito sacrifício... 


b) A renúncia da própria vontade (poder) em favor da vontade de Deus apenas; 

É quase proverbial a forma como os grandes de nossa tradição entregaram-se a prolongados, quase constantes jejuns, duras mortificações e austeridade. À primeira vista e aos olhos contemporâneos, um obscurantismo quase macabro. Quando nos recordamos do rigor de tais práticas... São atitudes perigosamente próximas de um mórbido desejo de autodestruição. 

Um passo a mais e tudo isso se degeneraria em patologia, auto-flagelação, vilipêndio da natureza e irreverência para com Deus mesmo. Mas tal não se deu com os homens do espírito. São-nos conhecidos, igualmente, instantes de jovialidade, sim, de sincero prazer também com a beleza e com a delícia também dos alimentos... 

Se é verdade que uma ascese repressiva é apenas caminho aberto para as neuroses, é verdade igualmente que não há liberdade e humana grandeza sem ascese. 


Observe-se, porém, que o interesse dos grandes do espírito, não é tanto a mortificação ou o afinamento do corpo, mas a vivificação, quase uma musculação, o afilamento do espírito, a fim de forjar, na têmpera da resistência, a fortaleza e a liberdade do espírito. 


c) A busca de conhecimento daquilo a que é chamado 

Além dessa peleja interior, observamos ainda nos grandes de nossa tradição uma busca sincera de conhecer melhor aquilo para o qual se sentem chamados. “Senhor, que queres que eu faça”? Senhor, que queres que eu, no século XXI, faça – que nós façamos? E aqui se faz necessário cautela, prudência, discernimento, estudo, oração, diálogo, intimidade com o Senhor e com sua Palavra... 


Papa Francisco, fazendo referência ao que a Conferência de Aparecida nos legou, nos dizia que “O discipulado missionário é vocação: chamada e convite. Acontece em um “hoje”, mas “em tensão”. Não existe o discipulado missionário estático. O discípulo missionário não pode possuir-se a si mesmo; a sua imanência está em tensão para a transcendência do discipulado e para a transcendência da missão. Não admite a auto-referencialidade: ou refere-se a Jesus Cristo ou refere-se às pessoas a quem deve levar o anúncio dele. Sujeito que se transcende. Sujeito projetado para o encontro: o encontro com o Mestre (que nos unge discípulos) e o encontro com os homens que esperam o anúncio”.


d) o diálogo com os irmãos 

Será, sobretudo, no diálogo com seus irmãos que ganha contorno de claridade o objeto das buscas... Lembremo-nos das decisões de Pedro nos Atos dos Apóstolos; mas também de Paulo; como também da Igreja ao longo dos séculos (Assembléias, Sínodos, Concílios, etc. E em nossos dias nossas tantas reuniões, encontros, etc. ). 


É, depois de Deus mesmo, a maior dádiva de nossa vida: os irmãos, junto aos quais, em comunitário diálogo, podemos, ainda uma vez, firmar os passos de nossas incertezas e entrever os acenos do terceiro misterioso (Deus) de nossas vidas. 

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É o que, grosso modo, podemos depreender das trilhas de não poucos mestres na vida do espírito. É possível, no entanto, ter presente tais indicações como inspiração para as decisões que a nós e só a nós competem e que nosso tempo nos oferece e de nós espera e exige... 

Seguro é que discernir, neste mundo, onde caminhamos às apalpadelas, as coisas de Deus exigem de nós mais, muito mais do que apenas reta intenção, boa vontade e um punhado de informações, conceitos e vocábulos religiosos... 

Trata-se de um percurso de fé, na fé... sobre o qual não se têm certezas absolutas e definitivas... E por isso mesmo, uma trilha repleta de percalços e esperanças... de acerto e preces. 


Em época nossa época, vemo-nos quase magneticamente seduzidos por palavras como comunicar-se, intersubjetividade, inter-notícias, informações... E tudo isto numa estonteante celeridade, provocando em nós a estranha sensação de nos encontrarmos numa centrífuga. Exatamente assim como resultam as coisas neste aparelho: um acúmulo nas bordas e periferias de nós mesmos, enquanto no centro se instala o buraco de um enorme vazio. 


A experiência cristã sempre demostrou grande atenção para com a possibilidade da graça de Deus. Assim, o consagrado é convidado a ser ‘pastor do Mistério’, um arauto de sua bondade, um aceno para Deus. O ser consagrado não é algo exterior ao indivíduo, mas quase como uma defluência da salvação realizada por Deus em sua vida e pessoa (ser). 

Isto nos impõe um esforço redobrado: na busca de zonas adequadas para um conhecimento de si mesmo e de Deus, da própria vocação e do diálogo com os irmãos.

O Cristianismo não é pietismo, moralismo, ética, mergulho na própria interioridade, colóquio da alma consigo mesma, mas encontro com a alteridade de Deus, no seguimento de Jesus Cristo e de seu modo de ser neste mundo. Este é o núcleo da fé cristã (o cerne) e o critério de verificação e de validade (cristã) de toda e qualquer experiência pessoal e comunitária, na Igreja. 

Seria, penso, um ganho para a própria fé e para a ação evangelizadora da Igreja, se reconquistássemos, sobretudo em certos ambientes ‘religiosos’, mas também em nossas liturgias um pouco mais de pudor na fala com e sobre Deus. Frequentemente, ouvimos aí discursos, pregações e orações que se prorrompem sobre Deus como sobre um ilimitadamente conhecido: Ele chama a cada um... Importa fazer sua vontade... Ele nos fala e nos escuta. A grande questão é saber até que ponto tais fraseologias coerem com a experiência de fé. É preciso, assim, perguntar e responder se isto, desta forma, corresponde às experiências humanas e ao modo como Deus se nos dá em nossa história. 


Ao final, não se pode esquecer que sempre haverá a possibilidade de repensamentos, desistências, crises, acomodações de acomodados. É o tributo que todos pagamos pela inviolável liberdade humana e pelos secretos desígnios de Deus mesmo, cuja última verdade a todos nos escapa. Mas também não podemos esquecer a prioridade maior: reabrir ao ser humano atual o acesso a Deus, a Deus que fala e nos comunica o seu amor para que tenhamos vida em abundância (cf. Bento XVI, Verbum Domini). 


As atas do Concílio de Basel (1432) registraram uma prece feita por Nicolaus Cusanus (1401-1464). Essa oração aponta não apenas para o que deveria ser o itinerário formativo de uma pessoa consagrada, mas como é o próprio itinerário de uma alma para Deus. Ei-la: Tu, Senhor onipotente, tu só te revelarás a mim na medida em que me revelares quem eu sou. Pois foi assim que, um dia, me disseste: só quando tu te conheceres a ti mesmo, é que, então, me encontrarás. Por isso, Senhor, dá-me ver quem eu sou, para que possa ver quem tu és e, assim, ser para sempre teu. Nessa oração está expressa a possibilidade da fecundidade de nossa vida na ação evangelizadora da Igreja.


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